Verdade & glamour

Publicado em 23/05/17

Olá, tudo bem?
Muitos de vocês, amigos e leitores do blog, me relatam que sentem que eu transmito uma imagem excessivamente feliz, idealizada e “glamorosa” do intercâmbio. Quanto à felicidade, temos a mais pura verdade: eu realmente amo a minha vida em Boston. Contudo, a respeito da idealização e do glamour, acho que eu te devo uma explicação. Se essa também é a sua impressão sobre o meu ano em Harvard, te garanto que ela está com os minutos contados… Prepare-se para por a mão na massa e conhecer a verdade nada glamorosa sobre a vida de um intercambista!
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Comecemos com alguns fatos sobre a Carol pré-intercâmbio para que você tenha noção da dimensão do problema: eu sempre morei com os meus pais, o que, na prática, significa que nunca lavei roupa, nunca limpei um banheiro, nunca varri o chão. O meu ovo mexido era a pior coisa que você comeria na sua vida, e a habilidade culinária parava por aí, apesar das inúmeras e frustradas tentativas da minha avó de me ensinar a cozinhar arroz. Já também realizei a proeza de falhar ao fazer miojo. Sim, miojo. O máximo que eu já havia feito em casa era lavar louças e arrumar a cama aos fins de semana, e olhe lá!
Somando-se a isso, há o fato de que eu havia alugado um apartamento com outros dois meninos, ainda menos prendados do que eu, se é que isso é possível. Aqui, vou acrescentar uma breve explicação: há 10 anos, os alunos do programa USP-Harvard dividem-se entre um apartamento e duas casas aqui em Boston. Não moramos no campus, e sim nesses imóveis alugados que são passados de ano a ano para o próximo grupo de brasileiros da USP. Quando nos reunimos para realizar a divisão das casas, apenas eu e esses dois garotos do segundo ano da faculdade de medicina, Lucas e Anderson, quisemos morar no apartamento, que tem exatamente três quartos (e apenas um banheiro). Desse modo, não tivemos muita opção a não ser morar juntos. Eu mal os conhecia, mas, do pouco que havia ouvido sobre eles, antecipei que a convivência seria complicada, para não dizer outra coisa.
Pois bem, voltando a 2017, como você já sabe, cheguei em Boston no final de janeiro. Anderson e Lucas já estavam na cidade há algumas semanas. Depois de alguns minutos tocando a campainha e esperando do lado de fora do apartamento, no frio e abarrotada de malas, finalmente a porta da minha nova casa abriu-se. E o que eu vi, de verdade, eu preferia não ter visto: era a redefinição da palavra “chiqueiro”! Que nada, chamar aquilo de chiqueiro era uma ofensa aos porcos. A sala parecia um campo minado, o banheiro, um zoológico, e a cozinha… que cozinha? Eu mal conseguia ver o fogão.

A cozinha antes da limpeza

A cozinha antes da limpeza


Eu realmente não conseguia entender como aqueles dois meninos estavam conseguindo morar ali. Como EU conseguiria morar ali?? A pior parte, porém, ainda estava por vi: abri a porta do meu quarto, que eu esperava encontrar vazio, e dei de cara com um depósito imundo. Vou poupá-lo de alguns detalhes, mas o quarto estava realmente asqueroso, e note que eu nunca fui muito exigente – meus pais que o digam. Cortinas escuras e pesadas, paredes manchadas de substâncias duvidosas, camadas de pó em todas as superfícies, baratas (ui!) e por aí vai.
Contratar uma diarista era impensável, dado o elevadíssimo custo. Me vi no meio do corredor, cansada de uma longa viagem, em um país estranho, ao lado de pessoas desconhecidas, e tudo que eu queria era chorar no colo da minha mãe. Entretanto, como essa não era uma opção viável, só me restava uma alternativa: engolir a vontade de chorar, colocar luvas de limpeza, ligar o axé no volume máximo, comprar um desinfetante e começar a faxina. Enquanto eu esfregava o chão, que seguramente não fora varrido no último ano, eu repetia mentalmente, como se fosse um mantra: “Faz parte da experiência. Você também está aqui para isso. Vai valer a pena.”
Não foi fácil, afinal eu nunca soube limpar nada, mas hoje percebo que não é uma questão de saber, e sim de precisar. A necessidade é o melhor professor, não é mesmo? E se você pensava que intercâmbio era só alegria, saiba que passei os primeiros dias do meu ano em Harvard glamourosamente, fazendo uma bela faxina ao som de Ivete Sangalo! Comecei pela cozinha, depois limpei o quarto e os demais cômodos, e aos poucos a casa foi ficando habitável e agradável, podendo ser enfim chamada de lar.
A cozinha depois da minha faxina

A cozinha depois da minha faxina


Os demais afazeres domésticos, que eu acreditava que seriam uma tortura antes do início do intercâmbio, surpreendentemente se mostraram o oposto. Lavar roupa é muito fácil, principalmente depois que o medo de manchar tudo passa. Admito que procrastinei ao máximo o uso da lavadora, mas chegou um ponto em que não havia mais um único par de meias limpo, e aí não houve escapatória. Inclusive, a primeiríssima vez que lavei roupa foi na Harvard University mesmo: os jalecos brancos estavam sujos, e um dos pesquisadores do laboratório me mostrou como acionar a máquina. Quantas pessoas podem dizer que aprenderam a lavar roupa em Harvard, não é mesmo?
Já cozinhar… Nunca pensei que proferiria tais palavras, mas cozinhar tem sido um dos maiores prazeres do intercâmbio. Gosto de ir ao mercado, de tentar receitas novas, de cozinhar para os outros e principalmente de saborear a minha própria comida. Não faço nada muito complexo, mas para quem apanhava do miojo alguns meses atrás, temos um avanço e tanto! Mas sejamos razoáveis: também não posso negar que há dias em que a preguiça de cozinhar prevalece, e eu sonho em ter a comida de casa prontinha à mesa.
Alguns dos meus últimos pratos

Alguns dos meus últimos pratos


Quanto aos meninos, esclareci as regras da casa e montei um cronograma de limpeza semanal para garantir que todo mundo faria a sua parte igualmente e, para a minha satisfação, os dois seguem-no (quase) religiosamente – e eu dou umas bronquinhas quando necessário. Contudo, acima de qualquer faxina ou cronograma, algo muito mais importante aconteceu: contrariando todas as probabilidades, nos tornamos MUITO amigos. Eu realmente me sinto em casa com eles. O Anderson é super sério e reservado, mas também extremamente prestativo, atencioso e educado. Um verdadeiro gentleman. Já para falar do Lucas, me faltam palavras. Ele é todo atrapalhado e indiscreto, mas definitivamente umas das pessoas mais genuínas e verdadeiras que já conheci. Meu grande companheiro de aventuras, o Lucas lembra demais a minha irmãzinha (eles inclusive têm a mesma idade), e com certeza não há palavra melhor para descrever a nossa parceria: irmandade. Acredite se quiser, mas nem nos meus sonhos mais otimistas eu pensei que nós três teríamos uma relação tão harmônica. De qualquer modo, sinto que um dia só termina de verdade quando sentamos os três juntos na sala para rir dos mistérios do Anderson, das maluquices do Lucas e das minhas excentricidades. Quase colocamos fogo na casa toda semana, mas quem liga? (Nota: Eles nunca leem o blog, então posso ser totalmente sincera. Mas, se por algum motivo, eles estiverem lendo, registro aqui meu mais carinhoso obrigada.)
Nós 3! Anderson à esquerda e Lucas à direita

Nós 3! Anderson à esquerda e Lucas à direita


Em suma, acho que essas sejam algumas das maiores riquezas e surpresas do intercâmbio: se (re)descobrir. Me descobri faxineira e cozinheira. Me descobri blogueira. Me descobri dona de casa e irmã mais velha. Me descobri morrendo de saudades da minha família no Brasil, mas encontrando uma outra aqui. Me descobri uma pessoa muito mais paciente. Descobri, enfim, que o “glamour” não está no que você faz, e sim no modo como o faz: feliz!
Ah, não! Acho que idealizei tudo de novo…
Até a próxima!
 
Carol Martines
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Carolina Martines estudou no Colégio Bandeirantes de 2006 até 2012. Em 2013, foi aprovada em primeiro lugar na Escola Paulista de Medicina (UNIFESP), mas optou por cursar medicina na Universidade de São Paulo (USP). Depois de concluir os quatro primeiros anos da faculdade no Brasil, foi aprovada em um programa que a Faculdade de Medicina da USP tem com a Harvard University. Este programa seleciona estudantes que terão o privilégio de ser alunos de Harvard por um ano, trabalhando com pesquisa científica.
 
“Cozinhar é o mais privado e arriscado ato.
No alimento se coloca ternura ou ódio.
Na panela se verte tempero ou veneno.
Cozinhar não é um serviço.
Cozinhar é um modo de amar os outros.”. (Mia Couto)

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