“Acalme-se, Sr. Mano!” era o que as vozes pacificadoras vindas lá de cima diziam. Contudo, não havia um dia que se salvasse dos episódios de insanidade do Mano. Os urros de rebeldia àqueles que tentavam cuidar do velho esquecido precediam não só a quebra espalhafatosa e sonora de louças e vidros, mas também das relações do homem com as pessoas ao seu redor. Diagnosticado com uma doença degenerativa de memória assim que nasceu, 200.000 anos atrás, o Sr. Mano, desde então, tem tido casos renitentes de amnésia. Por isso, tudo aquilo esquecido por ele ao longo dos anos, inclusive eu, uma pequena cruz de madeira já lascada e desbotada, foi deixado nesse depósito subterrâneo. Aqui, por mais que não haja muita luz, olho em volta e vejo prateleiras empoeiradas sobre as quais está uma trilogia literária, Empatia, Compaixão e Respeito, além da Bíblia na qual estou apoiada há muito e muito tempo. Percorro com o olhar cada canto sujo desse lugar em busca de um ínfimo sinal de vida e de esperança de que alguém virá nos resgatar, até que, repentinamente, um intenso feixe de luz branca penetra na escuridão do depósito e aniquila minhas expectativas de um dia voltar ao mundo dos homens: o próprio Mano estava ali, porém mais jovem, protegendo suas pupilas sãs daquele raio vigoroso de luminosidade que não indicava nossa salvação, mas era, apenas, o prenúncio da chegada de mais algo ou alguém no depósito do esquecimento.
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