Oi, tudo bem por aí?
Neste ano de intercâmbio, um dos aspectos mais fascinantes, e também uma das novidades que mais me tirou da zona de conforto, foi o clima, mais precisamente a mudança tão marcada das estações. Isso deve ter ficado muito claro para quem acompanha o blog desde o começo, vista a quantidade de vezes em que mencionei o assunto. Tem sido uma experiência única para uma brasileira que morou a vida toda no verão perceber como absolutamente todos os aspectos do cotidiano mudam ao longo do ano em Boston, do vestuário às opções de lazer, da alimentação à sua energia.
Faltam pouco mais de 40 dias para o final do meu programa em Harvard e do ano mais esplêndido da minha vida e, enquanto vejo a natureza fechar mais um ciclo, é impossível não refletir sobre a minha trajetória em diversos quesitos, mas hoje me concentrarei na questão acadêmica, e como cada fase da minha rotina no laboratório dialoga curiosamente com o clima. Fui avisada desde o princípio que não se faz ciência de verdade em um ano, mas era só isso que eu teria a partir do momento que meu avião pousasse nos Estados Unidos, em janeiro de 2017. Voltemos no tempo…
Tudo começou no inverno mais gélido, mas também mais emocionante da minha vida. Me vi em uma sala ampla e iluminada do 3o andar da Harvard School of Public Health, cercada por pessoas que eu nunca vira antes. Foi o meu primeiro dia no laboratório, o meu primeiro dia de neve.
Comecei a aprender algumas técnicas de nomes esquisitos – LDH, MPO, MTS, instilação, lavagem bronco alveolar, e por aí vai. Os procedimentos por si já eram complexos, mas mais difícil ainda era entender a aplicação de cada um deles nos fluidos retirados dos pulmões dos ratos.
O inverno foi eterno, assim como as religiosas reuniões de terça-feira de manhã. Eu não entendia a esmagadora maioria das discussões, porém estava lá, anotando e tentando aparentar ao máximo que toxicologia pulmonar sempre fora minha praia – ou, para ser mais adequada ao contexto, minha estação de esqui.
Mesmo chegando em casa cedo, a noite sempre chegava antes de mim: as horas de luz eram escassas, assim como os momentos em que eu não estava passando frio. Pelas ruas, as pessoas andavam apressadas e taciturnas. Entretanto, tenho que admitir que gostei do inverno: impossível negar que tudo branquinho tem o seu charme, principalmente para uma brasileira que nunca vivenciou tudo aquilo antes, uma constante oscilação entre a certeza de que você vai morrer de hipotermia e de que chocolate quente é a melhor invenção da humanidade. Ademais, a estação mais fria do ano me apresentou um novo esporte pelo qual me encantei instantaneamente: esquiar. Deslizar por uma montanha alva ao som apenas dos meus esquis, da minha respiração e do meu coração com certeza é uma das sensações mais maravilhosas que já experimentei.
Então, como em um passe de mágica, veio a primavera. Passarinhos cantando, rosas desabrochando, animais e pessoas saindo da toca e toda aquela história que eu já te contei em meados de abril.
Dentro do laboratório, porém, nem tudo eram flores. Continuávamos com os mesmos 21oC de sempre, essenciais para manter o funcionamento adequado de uma das várias centrífugas super potentes. Eu já estava conseguindo me localizar um pouco melhor naquele ambiente e não precisa perguntar onde estava cada pipeta, tubo ou placa. Meu projeto já começava a se desenhar, eu realizava a maioria dos testes sozinha, mas eu ainda estava muito perdida quanto ao melhor jeito de organizar a metodologia e os resultados. Para ser sincera, não entendia muito bem o rumo daquela pesquisa, apenas realizava o que fora acordado pelos demais pesquisadores do grupo.
Nessa época, ouvi em uma palestra da Harvard School of Psychology que, às vezes, uma bússola é mais útil do que um mapa, e eu até possuía um esboço do segundo, mas claramente me faltava o primeiro. Minha primeira apresentação de resultados em reunião foi ruim. Tentei procurar no meu vocabulário uma palavra melhor, mas não posso ser mais precisa do que isso: foi ruim, sim. Não é como se eu não estivesse sendo bem orientada, de modo algum. Só havia uma lacuna considerável entre o meu pensamento como aluna de medicina e pesquisadora. Mas eu me afobava, me cobrava: “não posso sair daqui sem uma publicação!”. Paciência, menina. Paciência.
Meses depois, o Sol finalmente chegou mais perto de Boston e o verão mais esperado da minha vida chegou. O ano de 2017 foi atípico, e demorou mais do que o normal para esquentar de verdade, sendo que só foi possível livrar-se de vez dos casacos em meados de junho. O aumento das temperaturas mudou a dinâmica da cidade, regendo a vida da população com acordes muito felizes. As pessoas passaram a andar sorrindo nas ruas; as mesas dos restaurantes, antes hermeticamente fechados por causa do aquecimento, passaram a ocupar as calçadas; caiaques e barcos a vela tomaram o Charles River.
Dentro do Brain lab, não poderia ser diferente. Não que alguém tenha sido mal educado comigo antes, mas o humor dos pesquisadores melhorou significativamente com a elevação das temperaturas e a aproximação de suas férias. Mais risadas, mais conversas, mais almoços em grupo. Tornou-se cada vez mais agradável estar no ambiente do laboratório. Com o recesso escolar de verão, a faculdade ficou praticamente deserta, sem alunos, apenas pesquisadores. Os seminários e aulas também foram interrompidos, o que era enfadonho, mas me sobrava mais tempo para me dedicar ao meu projeto. “Ganhei” uma pequena sala dentro do laboratório só para mim, mais estéril do que o restante do lab, o que era necessário para os meus experimentos, e organizada toda do meu jeitinho. E digo-o entre aspas porque ela não me foi dada, mas eu era a única pessoa a entrar lá, então, pelo menos na minha cabeça, era o meu cantinho.
Aos poucos, eu cada vez me sentia mais confortável naquela rotina e mais parte daquele mundo. Sentia falta de muita coisa do Brasil, mas estava genuína e indubitavelmente feliz no ambiente científico, na minha mini sala dentro do laboratório já toda organizada do meu jeitinho. E minha pesquisa seguia. Até que, no início de setembro, aconteceu um episódio muito marcante. As folhas das árvores começavam a secar lá fora enquanto eu finalizava uma análise de resultados de um experimento muito grande que eu realizara no dia anterior. E vou ter que confessar: os resultados não eram nada animadores. À primeira vista, não faziam sentido nenhum, e parecia haver um milhão de coisas que poderiam ter dado errado. Nesse momento, o meu supervisor, Ramon, entrou no laboratório, seguido pela Sumati, pesquisadora colaboradora do meu projeto, poucos minutos depois. Ambos começaram a discutir o experimento, e uma terceira voz, falando com confiança, entrou na conversa, mas não havia mais ninguém na sala. A discussão foi produtiva e vários detalhes foram acertados e refinados. Quando eles saíram, eu me dei conta: aquela voz ativa era minha. Veja bem, não é como se eu ficasse calada antes, eu sempre expressei minha opinião. Mas essa foi a primeira vez que eu senti que eu realmente dominava o projeto e o assunto, e tinha plena capacidade de ajudar a tomar grandes decisões sobre o mesmo. Nesse dia, te garanto, ninguém saiu pelas portas da Harvard School of Public Health com um sorriso mais largo do que o meu. A partir disso, tudo mudou, principalmente as reuniões semanais. A esse ponto, eu entendia cada palavra proferida e, mais do que apenas entender, eu tornei-me capaz de interpretar, avaliar e concordar (ou não). A ciência origina-se da discordância, não é mesmo?
O verão partiu de vez, mas não levou consigo minha alegria, muito menos o meu ímpeto. Restavam poucos meses para a entrega do relatório final, e eu estava cada vez mais perto de descobertas muito promissoras.
Veio o outono, e aqui preciso abrir um parênteses. O outono! Eu nasci no outono, e sempre tive um certo ressentimento disso, principalmente porque minha irmã nascera na primavera, a estação das flores! E eu, na temporada das… folhas secas?! Me parecia a maior chatice. Nunca vi muita graça nessa estação, sempre a interpretei como uma primavera sem flores, ou um período neutro entre verão e outono. Os poetas sempre enaltecem e romanceiam essas três, deixando o outono um pouco de lado. O mesmo é aplicável quando se trata de filmes e livros. Contudo, quer que eu te conte a verdade? Todo esse pessoal que subestima o outono, inclusive eu mesma antes de morar em Boston… todo esse pessoal não sabe de nada! Não há absolutamente nada mais deslumbrante no mundo do que o outono na região da Nova Inglaterra.
Uma beleza sem tamanho toma conta de tudo, e as árvores pintam-se dos mais variados tons de laranja, amarelo, vermelho, e até roxo. As folhas vão caindo, e dessa vez o solo vira a atração principal. Tenho demorado o dobro de tempo para chegar a qualquer lugar, porque sou incapaz de não parar a fim de apreciar o espetáculo. Como se não fosse suficiente, o ar tem um cheiro tão maravilhoso, tão indescritível! Para melhorar, ainda tive a sorte de viver o mês de outubro mais quente em Boston desde 1947, então pude passar muito tempo saboreando a natureza.
Mais uma vez, o interior do laboratório reflete o exterior encantador. Em suma, meus afazeres incluem mais experimentos para obter os últimos resultados a tempo e o planejamento da apresentação e do relatório finais. Algumas semanas atrás, meu chefe pediu para que eu preparasse alguns dos meus dados para que ele os apresentasse no congresso europeu de pneumologia em Bratislava, e voltou da conferência dizendo que a comunidade internacional elogiou muito a minha pesquisa. Ademais, outro projeto foi submetido para o maior congresso de Pneumologia da América. Por fim, outra novidade muito animadora: eu, que no começo do inverno estava completamente perdida dentro do laboratório, hoje tenho alunos que vem me assistir operando os ratinhos para aprender a técnica cirúrgica. Sou responsável pelo treinamento de pesquisadores de outros laboratórios, todos formados e muito mais velhos do que eu. Qual a dúvida de que estou adorando isso tudo?
O outono tem sido, de longe, minha estação favorita. Não só pela beleza, não só pelos resultados positivos na faculdade. Depois do inverno, primavera e verão aprendendo, localizando-me, fazendo novas amizades, lidando com a saudade, criando novos hábitos, é no outono em que eu me sinto total e completamente adaptada. É o momento da colheita. Está também cada vez mais perto a hora da despedida, mas ignoremos esse fato por enquanto. Ainda tenho muitas aventuras a viver – e muitos posts a escrever.
Queria muito lembrar quem me disse uma vez que ciência não se faz em um ano. De fato, não se faz mesmo. É preciso muito mais tempo, estudo e maturidade para isso. Mas, cá entre nós, em um ano dá sim para ter um gostinho…
Até semana que vem!
Carol Martines
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Carolina Martines estudou no Colégio Bandeirantes de 2006 até 2012. Em 2013, foi aprovada em primeiro lugar na Escola Paulista de Medicina (UNIFESP), mas optou por cursar medicina na Universidade de São Paulo (USP). Depois de concluir os quatro primeiros anos da faculdade no Brasil, foi aprovada em um programa que a Faculdade de Medicina da USP tem com a Harvard University. Este programa seleciona estudantes que terão o privilégio de ser alunos de Harvard por um ano, trabalhando com pesquisa científica.
“Sentir tudo de todas as maneiras,
Viver tudo de todos os lados,
Ser a mesma coisa de todos os modos possíveis ao mesmo tempo,
Realizar em si toda a humanidade de todos os momentos
Num só momento difuso, profuso, completo e longínquo.”
(Álvaro de Campos)