Olá! Bem-vindo mais uma vez!
Desde o dia 30 de março desse ano, quando o governo Temer anunciou um corte de 44% na verba federal destinada à ciência no Brasil, fiquei refletindo sobre o impacto que essa medida, se concretizada, causaria na nossa já deficiente produção científica.
Da minha própria experiência, comparando o que eu vivi na USP quando fazia iniciação científica com o que eu vivo aqui em Harvard, posso te garantir que, enquanto no primeiro caso praticamente tudo esbarrava na limitação financeira, no segundo, o dinheiro raramente é um problema. Naturalmente, nas reuniões do laboratório Brain, aqui nos Estados Unidos, sempre discutimos a maneira de tornar cada experimento mais custo-efetivo, mas, se for realmente necessário um gasto maior, a verba está disponível para tal. Vamos a um exemplo para tornar a situação mais clara: se precisarmos de uma determinada máquina que custa 10 mil dólares para um projeto, vamos primeiramente procurar se outros laboratórios associados ao nosso já a tem e podem permitir que a utilizemos. Se sim, melhor. Caso contrário, compraremos a máquina. Enfim, em Harvard, economizar é sempre o objetivo, mas nunca um fator limitante, entende? Já, no Brasil, a compra do aparelho provavelmente não seria possível. Obviamente, produzir conteúdo científico de qualidade torna-se muito mais fácil nas condições existentes nos Estados Unidos.
Entretanto, apesar de estar completamente imersa no mundo da pesquisa durante o intercâmbio, estou certa de que não tenho o conhecimento necessário para discutir a fundo esse assunto, uma vez que me falta uma visão mais ampla da situação. Aqui em Harvard, eu simplesmente acrescento o que eu preciso na lista de compras do pesquisador responsável pelos suprimentos do laboratório, e tudo surge magicamente poucos dias depois sobre a bancada, de tubos plásticos relativamente baratos a nano partículas de prata que custam mais de mil dólares. Desse modo, como me falta a expertise necessária para discorrer sobre a diferença entre o Brasil e os EUA nesse quesito, decidi conversar com quem realmente entende disso: David Kasahara, pesquisador brasileiro que trabalha na Harvard School of Public Health, por sorte, no mesmo corredor que eu. David estudou na rede pública a vida toda até ser aprovado no curso de Farmácia da USP. Fez mestrado e doutorado na Faculdade de Medicina da USP, pós-doutorado na University of Vermont e trabalha na Harvard University desde 2008 como research scientist. Muito obrigada por contribuir com esse post e responder às minhas milhões de perguntas, David!
Comecei a conversa questionando-o sobre as diferenças entre pesquisar aqui e no Brasil, ao que David respondeu: “Primeiramente, é preciso entender como o dinheiro entra no laboratório em cada um desses países. Nos EUA, o principal investigator (cientista chefe de um laboratório) aplica para um grant, no qual ele informa o que ele e seu time pretendem pesquisar e quanto dinheiro será necessário para tal. Se o grant for aprovado, o financiamento adquirido deve ser utilizado pelo principal investigator para cobrir TODOS os gastos relacionados ao projeto: seu próprio salário e o de todos os outros componentes do time, a matrícula dos alunos, as taxas cobradas pela universidade pelo uso do espaço do laboratório e apenas o que sobrar de tudo isso é destinado à ciência em si. Felizmente, no Brasil, o financiamento obtido para um projeto pode ser usado exclusivamente para a última parte, já que todo o resto é coberto pelas universidades, de modo que o principal investigator não precisa se preocupar com salários, contas de luz, taxas de limpeza, etc. Nesse aspecto, de fato, a ciência brasileira leva vantagem. Onde está o problema então? As quantias adquiridas pelo pesquisadores norte-americanos são assustadoramente maiores, alcançando a casa dos milhões, enquanto no Brasil a maioria dos projetos recebe valores bem mais modestos. Até 2005, quando eu ainda morava no Brasil, a verba ainda era razoável. Pequena, mas razoável. Contudo, com o declínio da economia brasileira, o dinheiro destinado à ciência diminuiu em proporções ainda maiores.”
Segundo dados de 2013, os EUA investem 2,8% do PIB em pesquisa e desenvolvimento, o que corresponde a 450 bilhões de dólares, mais do que qualquer outro país do mundo. O Brasil, por sua vez, destina 1,3% do PIB para essa finalidade, o que significa tímidos 31 bilhões de dólares, figurando em 10o lugar no ranking de investimento absoluto, mas apenas em 36o quando analisamos o investimento relativo do PIB em pesquisa em comparação com outros países.
Outra diferença marcante é, segundo David, a complexidade dos questionamentos feitos em cada um desses países. “Aqui na América do Norte, como há uma competitividade muito maior pelos grants, as perguntas feitas pelos cientistas são mais avançadas e, consequentemente, levam a uma maior inovação quando respondidas do que as pesquisas brasileiras. Outro ponto a ser ressaltado é que, enquanto os EUA investem tanto em ciência básica quanto aplicada, o Brasil foca muito mais na segunda. Exemplificando: a área básica estuda o funcionamento de um determinado receptor de uma célula, já a aplicada verifica o impacto de um medicamento que atua nesse receptor na saúde dos pacientes. Ambas são extremamente importantes e complementares.”
Quando perguntado sobre a vida do cientista, David diz que, nos EUA, trabalha-se mais. “Além de trabalhar mais horas em Harvard ou em qualquer outra universidade americana, o pesquisador pode dedicar-se quase exclusivamente à pesquisa, ao passo que, na USP, por exemplo, o cientista é obrigado a dividir seu tempo entre o laboratório e a sala de aula. Ademais, além de trabalhar mais horas, o pesquisador nos EUA também é mais bem remunerado. Enquanto isso, no Brasil, o salário desestimula muitas pessoas que gostariam de trabalhar com ciência. Ganha-se mais para ser professor em faculdades particulares do que pesquisador em universidades públicas. Quem vai querer dedicar-se à ciência nessas condições?”
Sobre os rumos da ciência no Brasil, não há dúvidas de que as diferenças acima mencionadas e o investimento cada vez menor vão impactar no desenvolvimento e no progresso: “Se ciência fosse uma maratona, o pesquisador americano é tão beneficiado que já começaria 20 quilômetros na frente do brasileiro.”
Sempre procuro terminar os posts de modo otimista, porque eu realmente sou uma pessoa muito positiva, mas, dessa vez, fazê-lo seria irrealista. Enquanto nosso país e nossos políticos não transformarem ciência e educação em prioridade, o futuro será triste. E as mentes brasileiras brilhantes como David – não se engane, pode nos faltar dinheiro, mas nos sobra riqueza intelectual – continuarão a sair do Brasil em busca de lugares que propiciem melhores condições para suas descobertas científicas.
Por fim, sei que a comparação do nosso Brasil com o gigante dos Estados Unidos é de certa forma injusta, mas são os únicos dois países em que já fiz pesquisa, então não poderia ser diferente. E mais: se queremos ser melhores, precisamos nos comparar com os melhores, não é mesmo?
Mais uma vez, muito obrigada, David Kasahara!
Até o post da semana que vem!
Carol Martines
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Carolina Martines estudou no Colégio Bandeirantes de 2006 até 2012. Em 2013, foi aprovada em primeiro lugar na Escola Paulista de Medicina (UNIFESP), mas optou por cursar medicina na Universidade de São Paulo (USP). Depois de concluir os quatro primeiros anos da faculdade no Brasil, foi aprovada em um programa que a Faculdade de Medicina da USP tem com a Harvard University. Este programa seleciona estudantes que terão o privilégio de ser alunos de Harvard por um ano, trabalhando com pesquisa científica.
“A razão é o passo, o aumento da ciência, o caminho, e o benefício da humanidade é o fim.”. (Thomas Hobbes)