A fase de vestibulares já chegou pro 3o ano e, com ela, a fase de ficar ainda mais esperto para escrever sobre os mais diversos temas nas redações. O ENEM há algumas semanas atrás escolheu um tema um tanto ousado: “A persistência da violência contra a mulher na sociedade brasileira”. Não estou no Brasil, mas minha “timeline” no Facebook foi inundada por comentários com as mais diversas reações, a maioria delas bem “contundentes”. Mas por que incomodou tanto? Um tema importante, polêmico, atual e, infelizmente, às vezes ainda um taboo…mas arrisco até dizer que talvez um dos motivos pelos quais tenha incomodado tanto é porque muitos alunos não sabiam o que escrever, não tinham substrato suficiente pra argumentar…alguns foram “pegos de surpresa” pois simplesmente nunca param para pensar sobre este tipo de questão. Vestibulandos estão geralmente preparados para escrever sobre fontes de energia sustentáveis, prontos para relacionar o tema com “O Auto da Barca do Inferno” ou para fazer inferências citando Thomas Hobbes…Mas será que o tema da redação de outros vestibulares também terá a tendência de fugir do “clássico” e será tão “ousado”? Achei excelente o ENEM ter suscitado este tipo de discussão que se não se restringiu apenas aos “aspirantes a universitários” que prestaram a prova, mas que também se estendeu pra todo o resto da “rede social” – interessados ou não no tema. É bom, sim, que nós brasileiros – estudantes ou não – não vivamos alienados ou ingênuos, mas que tenhamos ciência dos problemas que nossa sociedade e o mundo ainda enfrentam. É bom estar inteirado do que tem acontecido, tomar referências e buscar substrato para sustentar as próprias opiniões sobre temas importantes e taboos, independente da necessidade de ter que se preparar para escrever uma redação no vestibular sobre isso.
Toda esta discussão me fez pensar em um assunto ainda muito delicado aqui nos EUA, mas que é igualmente importante: o preconceito racial. Se nos EUA tivesse ENEM, um tema de redação que teria igualmente um potencial para causar tanta polêmica seria “A persistência da discriminação racial na sociedade americana”. Da mesma maneira que, na teoria, a violência contra a mulher não deveria mais existir no Brasil mas, na prática, ainda existe, a discriminação racial nos EUA também.
Infelizmente, aqui ainda se vê o tipo de “discriminação afrontosa” – vide vídeo abaixo, com uma reportagem acerca da agressão racial por policiais:
https://www.facebook.com/jornaldaband/videos/429767100561381/?fref=nf
Porém, na maior parte das vezes a discriminação não é afrontosa, mas sim silenciosa e indireta. Por exemplo, recentemente uma americana estava me contando que é ainda é bem frequente quando há um negro dirigindo um carro, sozinho, em um bairro de brancos, ser parado pela polícia, a título de “apenas checar se está tudo certo”. Ainda mais discreta e indireta (mas também igualmente presente), é a discriminação socio-espacial. Explicando melhor: há um parque perto da minha casa em que há um campo enorme (com infra-estrutura para esportes como baseball, lacrosse, rugby) e duas quadras de basquete. Para aqueles que são minimamente observadores como eu, pode-se ver uma “sutil” segregação: no campo sempre há mais de 90% de brancos e, nas quadras de basquete, mais de 90% de negros. O campo e as quadras são DO LADO uma das outras…brancos e negros não brigam, não se xingam, não impedem que cada um jogue onde quiser, não há nem um “confronto direto”… mas eles silenciosamente ainda hesitam em se misturar e se engajar na mesma atividade! Talvez isto também ainda reflita um pouco do histórico conturbado da escravatura dos negros nos EUA: esportes como lacrosse, baseball, rugby, por exigirem mais equipamentos e infra-estrutura, eram considerados esportes dos “brancos ricos”…enquanto esportes como basquete, futebol, eram mais acessíveis à toda a população e, portanto, os negros também poderiam jogar. É claro que, muito felizmente, hoje em dia não é mais assim! Mas será que, na prática, ainda não vemos alguns traços discretos desta antiga divisão, como o exemplo do parque?
Além de toda esta questão sobre o tipo de discriminação (“afrontosa” vs “silenciosa”), é ainda mais intrigante que o “discriminado” e o “discriminador” podem ser pertencentes a qualquer uma das raças. Sendo mais clara, não há apenas um preconceito por parte dos brancos com os negros, mas também um preconceito por parte dos negros com os brancos (e este conceito aplica-se a qualquer outra raça também…estou falando mais sobre brancos e negros simplesmente porque aqui é mais comum ter contato com situações como essas). Fiquei chocada ao ouvir de uma amiga americana uma outra história que aconteceu recentemente: uma conhecida dela é uma professora branca e ensinava numa escola cuja maioria dos alunos é negra…em uma reunião de pais, ela foi abordada pelos pais de 3 de seus alunos…eles simplesmente pediram a sua saída pois não queriam que os filhos deles fossem ensinados por uma professora branca!
Isto tudo me remete ao famoso drama “Orgulho e Preconceito”, da escritora britânica Jane Austen. Não era apenas a sociedade aristocrática do início do século XIX na Inglaterra que enfrentava o dilema “afinal, quem é o orgulhoso e quem é o preconceituoso?”…nós também enfrentamos! Minorias também se tornam preconceituosas e orgulhosas contra as “preconceituosas e orgulhosas” maiorias. Como vi em comentários sobre o tema do ENEM na semana passada, muitas feministas, na luta a favor da “igualdade entre gêneros”, se tornam preconceituosas e orgulhosas contra os homens. Muitos negros, na luta a favor da “igualdade entre gêneros”, se tornam preconceituosos e orgulhosos contra os brancos. Muitos homossexuais, na luta a favor da “igualdade entre opções sexuais”, se tornam preconceituosos e orgulhosos contra os heterossexuais. Muitos pobres, na luta a favor da “igualdade social”, se tornam preconceituosos e orgulhosos contra os ricos.
Machistas e Feministas, Brancos e Negros, Homossexuais e Heterossexuais, Ricos e Pobres, e por aí vai: quem são os preconceituosos e quem são os orgulhosos? Já pensou nisso? Quais são os seus “orgulhos e preconceitos”? Quais são os “orgulhos e preconceitos” do contexto social no qual você está inserido? Quais são os “orgulhos e preconceitos” que o nosso mundo como um todo está vivendo? É bom pensar nessas coisas…não apenas porque pode cair como tema de redação de algum vestibular… mas será que talvez pensar sobre isto também não faça parte da solução desses problemas?