Desenho multi-Pessoa
I – esboço primeiro
A pena trêmula na mão do artista hesita, querendo entregar-se. Pondera tirar o chapéu, educado, e sair do recinto. Afinal, que mal faz a consciência da impotência? Saberia viver sem a singularidade desta obra. Faria outros desenhos, compraria tintas, esqueceria-se da covardia. Que é que lhe segurava na cadeira, senão orgulho? Não comentaria sobre o caso com os colegas, e este cliente, seguramente, não o encontraria. É de omissão e mentira que se faz história, afinal.
Mas sua sombra obrigava-o a sentar-se, pesando seus pés. O pulso coçava ansioso, dizendo “rabisca, rabisca”.
Espiou novamente o cliente. Não entendia, não era a aparência o problema. Era humano, nem belo nem feio. Mas aquela troca de olhares rearranjava-lhe os órgãos internos.
Ele sorriu, perguntou se algo lhe incomodava. Quis responder que sim, mas não o fez. Viu nos miúdos olhos escondidos atrás dos óculos um universo. Pouco sabia das constelações, mas sentiu que ali cabiam todos os signos, limpos e claros como nunca foram na cidade. Tão limpos, tão claros, que pareciam poder guiá-lo a vida toda. Se antes queria fugir, agora desejava que aquelas estrelas, dentro daqueles olhos, aprisionassem-no lá, para sempre.
Mas eram olhos humanos, aqueles. Pior ainda, olhos estranhos. Jamais poderia perder-se neles, ainda que desculpava-se na arte, na análise.
A mão exigiu de novo, “rabisca, rabisca”, e ele molhou a ponta da pena na tinta.
Três traços, e fez os olhos.
II – esboço segundo
Todo bom desenhista sabe que a expressão vem do olhar, e que parte do olhar são as sobrancelhas. Seria seu próximo passo por lei, sempre nítidas, sempre certeiras na representação do desfocado.
Preparou a mão, que ainda cobrava catarse, e olhou de novo.
A máxima da expressividade estava ali, na angústia que eram aquelas sobrancelhas. Fazia-se sério, típica pose do retratado, mas a faixa de pelos em cima dos olhos não mente. Fortes, ofendiam-se com a análise demorada. Era como se soubessem da vergonha que quase cometera, de desistir. Como pode, pensou, haver tanta humanidade em simples sobrancelhas? Franzidas diziam muito, e o artista quase se pegou ponderando se seu cliente também perdia o sono, temendo a efemeridade, amando e odiando tão passional, e se também racionalizava o grito. Era desenhista, era missionário da racionalização do abstrato.
Não sabia dizer.
“Que sei eu do que serei, eu que não sei o que sou?”
Belamente, angústia e misticismo misturavam-se no olhar, tão próximos, complementares tal como propriamente olho e sobrancelha.
Mais três traços, e fez as sobrancelhas.
III- esboço terceiro
Agora sua mão corria mais solta, sem toda ansiedade inicial. Faria três em um tiro só. O nariz, as orelhas e o cabelo.
Disse-lhe que fizesse uma pausa. Queria ver os cabelos em movimento. O cliente tirou o chapéu um instante, indagou sobre o resultado da obra. Dado espaço para um curto diálogo, quis interrogá-lo. Queria saber se combinavam, artista e modelo. Como misturavam-se na obra, queria expor. Ele, visual, e cliente, dos olhos místicos e sobrancelhas niilistas.
Todavia novamente, restringiu-se a conduta social. Mas isso pois perdera o foco novamente naquele homem que mexia tanto consigo.
Era estranho. Se algum novato perguntasse se havia expressividade na orelha, riria, certamente riria. Mas havia algo ali, não era a forma das orelhas, ou o nariz fino ou a cor escura do cabelo que lhe intrigavam.
Não parecia real. Talvez fosse obra de sua sombra, que lhe soltara os pés no esboço primeiro. Talvez fosse a sobra dele, que dialogara com a sua na penumbra. Como podia sentir tanto de orelhas, nariz e cabelo?
Meditou. Culpou as sombras por fazê-lo atrasar ainda mais o desenho.
Cerrou os olhos. Respirou calmo. A velocidade da cidade emudecia-se e a brisa de outono arrepiava os pelos na nuca.
Olfato, audição, respiração e toque. Existiam e apenas existiam. Racionalmente, respiração é troca de gases entre o organismo e o ambiente, mas essencialmente? Não é sentimento, é sensação. Sensação de viver, objetivo de viver. Como pode o homem ter a audácia de organizar sons em cartilha infantil? Que é vida? É angústia maquinária ou é a chuva que vai pingando gélida no topo da cabeça?
Bastava sentir o vento acariciando os cabelos, ouvir o canto dos pássaros e respirar a plenitude, sem pensar.
“O mundo não se fez para pensarmos nele.
(Pensar é estar doente dos olhos)
Mas para olharmos para ele e estarmos de acordo.”
E pela primeira vez, o desenhista, sentiu.
Mais três rabiscos para um belo par de orelhas, um nariz e cabelo.
IV esboço quarto
Por fim a boca, boca que nos torna humanos. Tímida e mínima debaixo dum bigode igualmente miúdo.
Boca que ridiculariza, boca que enaltece. Fala de normas e caos, tudo junto, num emaranhado de palavras. Boca que exprime otimismo e fatalismo. Palavras soltas, amarradas.
As palavras que descrevem e escrevem poesias são as mesmas que nos situam. Somos gente, somos história. Somos a própria comunicação. Há algo mais humano que a boca?
Palavra é memória, palavra é premonição. Racionalização do irracionável, em equilíbrio.
Mordiscados lábios inferiores identificam-nos homens.
Históricos, tais como a própria vida.
“Grande e nobre sempre
Viver simplesmente.”
Rabiscou três vezes e fez a boca.
A mão calou-se por fim.
V – obra finalizada
Ilustrado era finito. Poderia tornar-se novamente sombra. Fragmento de alma, a mão desmontava-se em poeira. Olhares cruzados com o cliente novamente, o artista sabia que era ali, no misticismo cósmico daquele olhar, que seria pleno. Pudera ainda explorar-lhe o corpo todo! O quanto ainda descobriria daquela alma, tão distinta, que lhe pedira, num simples fim de tarde, um desenho? Talvez os pés fossem de monge, cansados de caminhar. Talvez os ombros mostrassem leveza infantil. Não tivera tempo de descobrir.
Sabia, porém, que as mãos eram suas. Mãos que regem o artista, que se machucam no artesanato de todas as filosofias. Era sombra, mas era sombra das mãos. De todas incertezas, sabia ser as mãos.
Era sombra tal como os outros, pedaço que complementa o ser. Esboço, mais precisamente.
Era detalhe, que buscava entender-se, na ausência de si. E na ausência de si, fez mãos que o desenhassem todo, descobrindo que o todo era conjunto.
A obra completa eram eles todos juntos. O desenho de um era a biografia de outro. Entrelaçados, autopsicografados. Teatrais e verdadeiros, na intensidade, na inocência e no passado, unidos nas estrelas.
“E assim nas calhas de roda
Gira, a entreter a razão,
Esse comboio de corda
Que se chama coração”
Era Campos, era Caeiro, era Reis, era Pessoa.
Mas principalmente, era Fernando.