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05/11/2014

Carta em branco

#Prata da casa #Produção de alunos

Carta em branco

Publicado em 05/11/2014 07:01

Caminhar na vida é metáfora velha. É metáfora que se usa e abusa, de curvas e montanhas, ao imaginar a estrada a ser percorrida. Mas é sobre a metáfora batida que me sustento, pois é a que melhor ilustra esse caos.

Acontece que nunca percorremos sozinhos a trilha da vida.
Não há trama que entretenha com um só personagem. São os outros, juntos a nós mesmos, que nos apresentam os empecilhos. Caminhar por caminhar seria a mesma coisa que apenas envelhecer.
Por isso andamos juntos. Por isso nos tocamos. Viver não é estar vivo. Viver é sentir o tudo e o nada.
Nesse velho caminho tortuoso, andamos e paramos e caímos e seguimos em frente. Fazemos amizades, que viram inimizades, e outras que duram. Abraçamo-nos e tocamo-nos e sentimo-nos e sorrimos. Arrastamo-nos cansados. Corremos às vezes.
Paramos um tiquinho só, olhamos para cima, quando já quase não há mais Sol.
E viramos para trás com ternura entre os lábios.
O passado abre feridas tão facilmente quanto abre sorrisos.
E o futuro é neblina pura, que cobre o caminho e nos prende na fantasia de desejar acertar as previsões.
Não se pode dissipar todo branco da paisagem. Vivemos em base de mistério puro. É o que motiva o ser humano a continuar sendo. É pela neblina incerta que continuamos andando. O vazio do “por vir” é o medo que sentimos, é a ânsia, é a motivação.
Seguir a trilha é se descobrir em cada pedacinho de pegada abandonada.
Tendo pés no chão e caminho estudado, até se consegue adivinhar pouco do que o véu natural esconde.
Tendo pés no chão, num momento de descanso, é possível ver os corpos sumindo no amanhã branco como papel.
(O futuro é neblina justamente por ser assim, branco, inimaginável. Branco como a tela do artista, branco como a folha do escritor.)
Estes corpos que somem, agora, são vocês, se entregando ao amanhã.
Sim, vocês que seguem caminho, agora que chegaram à parte mais acidentada da trilha. Seus pés cansados rastejam por pedras e galhos soltos, fazendo barulho, à medida que caminham. Posso ouvir a respiração rarefeita daqui. Posso quase sentir seus olhos apertados, tentando enxergar a paisagem oculta pela branquidão desesperadora.
Mas isso daqui.
Daqui de onde estou.
Alguns quilômetros atrás na trilha.
Sentada e pronta para virar memória.
Ser a personagem que existe, quando vocês olham para trás. Mas que não existe ao lado, e nunca existiu na frente.
Há vantagens e desvantagens de se estar aqui, atrasada.
O que prevalece, durante a noite quando me percebo só, é que me percebo só. A minha trilha será a que desvendei por vocês, nesse trecho. Depois disso, quando for a minha vez de me perder no imenso branco, não estarei com vocês.
E vocês não estarão comigo, quando caírem pela primeira vez (no futuro), quando forem sorrir pela primeira vez (no futuro), nem quando algo completamente inusitado os chocar pela primeira vez (no futuro).
Eu serei inteiramente ausente.
O vazio de mim será em vocês. E o vazio de vocês será em mim.
Não tenho o poder de medir o vácuo que deixo. Não posso afirmar se farei falta. Não sei dizer o tamanho da minha ausência em vocês. Mas sei dizer a de vocês em mim. Nossos momentos são eternos e efêmeros. A marca invisível é gritante. Cada segundo mortal que força nossas feições a cair passa mascarado, nas rugas de um sorriso. Um momento fica ao terminar. De instantes se constrói o paraíso. Por isso amamos, prolongando os momentos. Por isso sentimos, por isso escrevemos e por isso abraçamos.
Ser ausente será uma experiência de dor, pois vou sentir que não lhes sinto mais.
E vou viver cada novo toque, escutar cada nova risada, brindar a cada nova conquista, ouvir cada nova palavra, cortante num espaço inacabável de comparações. Posso viver novos amores, novas vidas, mas a trilha da vida é constituída por gravidade lunar. Sem vento.
Cada pegada é uma tatuagem. A pele da terra é nossa maior garantia literária.
Ao ir embora, vocês nunca me deixam, e eu só queria dimensionar um pouco do vazio que fica.
Ainda se fosse possível numerar cada momentinho…
Não estou chegando a lugar algum.
Talvez eu devesse só deixar voar, sem me desesperar e sem tentar deixar em vocês um sumiço proporcional ao que fica em mim.
Talvez…
Ausentes, nos tornamos presentes, pois o término é o que perdura. É o que chamamos “saudade”.
Só para finalizar, como amiga, sugiro que vocês se joguem. Dispostos a quebrar o dente, ralar o joelho, e cantar na calada da noite, felizes e bêbados.
Só é possível escrever onde não foi escrito antes, meus amigos, no espaço em branco. Se entreguem à neblina. Deixem que ela os abrace forte, e os devore aos poucos. E uma vez consumidos totalmente pelo futuro, construam-no, reformem-no. Risquem a neblina de giz de cera. As cores são tuas, o papel é janela. Criem no branco as tuas felicidades, tuas crises, teus pensamentos. Vão sem medo, vão sem pensar duas vezes. Vão sem virar a cabeça, pra tentar enxergar um vulto meu atrás.
Eu prometo, ser memória não é tão ruim assim.
Mas vocês deviam saber disso.
Afinal.
São memória também.

– Aos terceiros, com todo amor que cabe em mim.

Rafaella Milani Santos – 2H2

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