As paredes limpíssimas (será?) do hospital pareciam-lhe excessivamente brancas. Aos oito anos de idade, ela gostava é das cores – daí a alegria quase exagerada quando via um arco-íris. No dia em que o irmão mais velho mostrou-lhe que bastava colocar o jato d’água saído da mangueira contra o sol para se ter o que ele chamou de “cores em profusão” – Ele usa umas palavras engraçadas, ela disse à mãe logo após o beijo de boa noite -, ela não se conteve e chorou. Tá triste por que, menina? Não estou, respondeu ao pai, num misto de lágrimas e gargalhadas tão genuínas quanto a própria infância, que eram sua maneira de expressar o que se passava dentro dela, já que talvez soasse infantil demais dizer aos pais que sentia o coração palpitar – daí o riso – até quase chegar à garganta – daí o choro – com a visão do arco-íris artificial, ela pensou, embora não tivesse consciência deste pensamento no momento. Até a brancura daquelas paredes, porém, podia ser relevada aos domingos. Era aos domingos que vinha o pai, quase sempre com um pacote de balas ou uma barra de chocolate entre as mãos entrelaçadas nas costas – Que delícia!, enjoara do Danone oferecido pelas enfermeiras.
Muito gordo, o pai só não tinha o corpo mais largo que o sorriso, e era este tão vibrante que parecia irradiar vida por todo aquele lugar impregnado de morte no momento em que a porta do elevador se abria. A chegada semanal era aguardadíssima, a ponto de ela se posicionar como um soldadinho disciplinado na frente da entrada sempre 15 minutos antes do horário combinado. Se eu não vou agora e o trânsito tá livre, ele chega antes e eu perco o sorriso, explicou em tom de obviedade enquanto a mãe lhe amarrava os sapatos.
O fato é que ele precisava ir embora depois de duas horas brincando com a menina naquele dia. Ambos tinham a consciência de que aquelas seriam as duas horas mais felizes de suas vidas até a próxima semana, embora o pai tivesse também a consciência (corrosiva e inevitável) de que aquelas seriam as duas horas mais felizes de sua vida até a próxima semana se houvesse próxima semana. Era com este pensamento agridoce que ele deixava o prédio todos os domingos, levando consigo qualquer resquício de riso, alegria, vida, cor. Lamentando a impossibilidade de visitá-la a intervalos de tempo mais curtos, questionava o propósito de se ausentar para garantir a vida (e de viver, por que não?) em tempos de tamanha desilusão, de desespero iminente.
Mas você volta amanhã, pai? Você sabe que não, seu pai vem no próximo domingo. É, papai gostaria de vir antes, mas tem que… Trabalhar, eu sei, desculpa, mas me dá um abraço? Sorri. Abraça a menina, com o cuidado de contrair a barriga para não pressionar a cicatriz abdominal deixada pela última cirurgia. Papai, espera, dá um abraço na mamãe antes de ir? Um abraço em mim? É, ué, um abraço e um beijo, e diz que vai sentir saudades dela também, papai.
Que importava se não mais se entendiam fora dali? Que importava se os advogados do divórcio já estavam contratados por ambas as partes? Que importava se ele traíra? se ela traíra? Não traímos todos, não traem todos, não traímos na cabeça, antes de tudo? o que há de mais humano que trair? Abraçou a companheira de quase doze anos de união incompletos (e que não haveriam de se completar), no que talvez tenha sido o momento de maior cumplicidade de toda sua história juntos. Naqueles poucos segundos, trocaram mais ideias, estiveram mais próximos um do outro e, principalmente, compartilharam mais dores do que nunca. A menina dilatou o lábios em um sorriso, e aquele seu último sorriso justificou tudo.