Os gritos se misturavam com a música. Houve um conflito de cores enquanto chamas subiam aos céus.
Levantou-se do piano. Aproximou-se da janela. Era domingo. Deveriam ser três horas. Era madrugada, mas a rua estava repleta de luzes. Bebeu whisky. Sentou-se, novamente, ao piano e tocou Beethoven… Ergue-se, aproximou-se da lareira e olhou para o retrato emoldurado. Os cachos negros sobre o vestido de veludo escarlate. Os olhos fixos de mais. Desde criança, tinha essa curiosidade, para onde olhavam com tanta devoção?
Eram três e quinze. O relógio parecia incansável. O tempo passava e ele estava ali, em bronze. Presente nas brigas da família, nos saraus da época da avó. Dela, só restara o retrato, no alto da lareira, e a sombria e marcante presença, em cada canto da mansão. O relógio era cúmplice dos minutos mais íntimos daquela casa.
Eduardo sentou-se no divã e bebeu mais um gole de Jack Daniels. Suas mãos estavam trêmulas. Nunca mais tocaria como antes. A bebida o enclausurava na sua soberania. A bebida e a avó eram parecidas: forte, marcantes. E ele as temia, sabia disso…
Eram quatro horas e ele não tinha sono. Queria aproveitar cada instante da vida. Aprendera com o pai o valor da vida. O pai? Olhos submissos, resignados ao olhar penetrante e severo do quadro acima da lareira. Por que, mesmo depois de morta, ela o assustava? Tinha medo, mas gostava de senti-lo. Era uma forma de sentir-se livre. Só aqueles que têm liberdade têm medo. Mas era falso. Ele não era livre. Queria ser músico, mas ela o fez advogado. Por que se resignava?
Sentou-se, novamente, ao piano e toucou Mozart. O preferido da avó. Por quê? Por que tentava agradá-la? Por que não se libertava? Parou. Rasgou a partitura em mínimos pedaços. Mais um gole… Riscou um fósforo. Ateou fogo à partitura. A música tem um aroma estranho quando em chamas. A avó também. Cheiravam a rosas e champanhe. Estaria louco?
Tocou Chico Buarque. O som macio o acariciou. Podia-se ver a mansão dos Aguiar em chamas e ouvir os últimos gemidos do piano agonizante. No ar, pairava um aroma de rosas e champanhe. Sombrio… Marcante…
Olharam para trás. Gritaram. A festa acabou.
Em busca da verdade,
Pela liberdade,
Através da ambiguidade,
Surge a fatalidade.
Paulo Rubens, 8C