Lutando contra a artrite, Lázaro escolheu a chave que conhecia tão bem e abriu a porta da frente. O verniz nas volutas dos ornamentos barrocos estava descascando. Lá dentro, uma dezena de fantasmas brancos cobriam os móveis do pó levantado pela corrente de ar que entrou com Lázaro. Devolveram-lhe o aroma de Margot e instantaneamente um flash de lembranças quase palpáveis do corpo dela, do estilo que só ela tivera na juventude e uma distante noção do modo com o qual ela encarava a vida. Nostalgia. Tristeza e uma infindável solidão que enfraqueceu-lhe as pernas. Segurou-se no batente da porta. A casa ainda tinha a presença dela. Forte, como se ela estivesse mesmo dentro da casas
Lázaro entrou com a maleta. Ficaria lá pelos próximos dias, para fazer o inventário dos espólios de Margot. Passou a tarde retirando os lençóis brancos dos móveis, colocando o relógio de parede para funcionar e abrindo a casa. O sol entrava pela janela e iluminava as partículas de pó se revoltando contra aquele intruso. Em seguida, abriu o escritório. Paredes forradas em veludo já mostravam sinais de infiltração. Largou a maleta sobre a mesa. O escritório não lhe dizia nada sobre Margot. Alguém havia estado aqui e deixado a papelada para que ele trabalhasse. Essa pequena intromissão tirara daquela sala todo resquício dela. E de qualquer forma, nos anos que Lázaro passara na casa, usara o escritório muito mais do que ela.
Ao lado do escritório, as escadas. Lázaro teve medo da artrite e não subiu. Ao lado delas, um elevador rudimentar. Entrou, fechou as grades a duras penas e apertou o segundo andar, reclinando contra as paredes de madeira laminada. O maquinário rangeu um protesto, mas aceitou a subida. Lázaro saiu do elevador para um corredor estreito em forma de L que levava dos dois quartos à direita, para um banheiro à esquerda.
Guiado por um irracional desejo, pisou no banheiro em frente ao espelho simples, quadrado, sobre a pia branca que ele sabia estava descolada da parede e bamba. Margot nunca consertara a maldita pia. De uma cômoda ao lado da pia vinha-lhe o aroma dos perfumes de Margot. Eram perfumes masculinos, em sua maioria. Ela adorava perfumes masculinos, e embora ele conhecera outras mulheres que os preferiam, lembraria sempre dela quando associasse o corpo feminino a estes aromas. Lembrava-se agora das tantas vezes em que voltara dos encontros com ela e descobrira maravilhado que suas roupas estavam impregnadas daquele cheiro. Esticou a mão para alcançar o interruptor, mas deteve-se diante de idéia de que encontraria no espelho não seu próprio reflexo, mas o reflexo dela…
Pausa. O gotejar de canos vazando trazia à mente ideias de tempo, do limo crescendo entre azulejos.
Respirou fundo e apertou o interruptor: no espelho, apenas a figura nariguda e enrugada dele mesmo. A devastação de seus cabelos brancos criando entradas cada vez mais fundas na testa. Olhou em volta: havia ainda a banheira de porcelana, com a cortina de plástico suja, e o armário de remédios que não socorrera Margot a tempo. Estruturas de ferro com toalhas empoleiradas também. Tudo esverdeado pela iluminação de uma doentia luz fluorescente. Sua mão ainda estava no interruptor: apagou a luz e foi para o quarto.
Deteve-se frente à porta entreaberta do quarto de Margot por alguns momentos. De repente faltavam-lhe forças. Silencioso, de cabeça baixa, empurou a porta com dois dedos retorcidos pela doença. A porta abriu-se com um ranger melancólico: Lázaro viu primeiro o piso de madeira. Era diferente do piso nos outros cômodos. Era uma madeira escura que escurecia o aspecto do quarto inteiro e abrigava os dois tapete persas de Margot. Notou logo que haviam mexido em um deles: no padrão geométrico bordado no tapete, havia uma imperfeição – obrigatória em todo tapete persa legítimo. Só que não estava no mesmo lugar de sempre. Haviam girado o tapete. No fundo do quarto, a cama de Margot: cama de viúva. Comprada quando Lázaro saiu de sua vida, como se tivesse morrido. Era banhada pela luz daquele fim de tarde: vermelha, entrando pela janela e sendo filtrada por persianas. A luz na cama eram cortes profundos. A cama, com luzes e sombras, era um tigre transmodificado em mobília. Lázaro veio sentar-se em seu lombo, acariciando-a como para evitar que acordasse. Por um momento, devaneou na ilusão de que acariciava Margot. As curvas mornas de Margot adormecida, nua e jovem. Seu corpo esbelto que ela dizia ser gordo de teimosa que era. Forçou-se a despertar e recolheu a mão atrevida. Acendeu a lâmpada da mesa de cabeceira e a luz mostrou-lhe um vulto ao lado do armário. Seu coração acelerado esperando encontrá-la: vestiria seu casaco de pele perfumado e as roupas de uma senhora de respeito, vindo dizer-lhe que o amava.
Não. Era apenas o casaco de pele pendurado na porta do armário. Perfumado, porém oco, sem Margot em roupas requintadas por dentro. Lázaro arrastou-se até ele como um morto-vivo e afundou o rosto na pelagem, as lágrimas brotando em profusão enquanto absorvia aquele perfume até seus pulmões estarem prestes a arrebentar. Tinha medo de que o aroma sumisse com o tempo e com ele toda memória visceral de Margot. Caiu de joelhos frente ao casaco, soluçando como criança. Quase podia sentir os dedos carinhosos e macios dela percorrendo seus cabelos que não mais existiam enquanto ela sussurrava: “Shh… Calma, meu amor. Vai ficar tudo bem.”
Prof. Pedro Leão