O “velho Braga” e o “Poetinha”: assim ficaram carinhosamente conhecidos Rubem Braga e Vinícius de Moraes, cujo centenário de nascimento se comemora em 2013. O primeiro, jornalista e cronista, o segundo, primordialmente poeta. No entanto, as obras desses dois escritores revelam como classificações de gênero são relativas… Braga é o cronista cujos retratos do cotidiano recendem poesia; que encontra, na cena corriqueira, uma súbita iluminação capaz de apontar para um sentido transcendente. Em “Viúva na praia”, por exemplo, a cena de observação da mulher que perdeu o marido leva o narrador a uma súbita consciência (epifania) de estar vivo:
Vivo! Vivo como esse menino que ri, jogando água no corpo da mãe que vai buscá-lo. Vivo como essa mulher que pisa a espuma e agora traz ao colo o garoto já bem crescido. O esforço faz-lhe tensos os músculos dos braços e das coxas; é bela assim, marchando com a sua carga querida.
Em caminho de certa forma inverso, Vinícius de Moraes, que começou a carreira literária com uma poesia transcendentalista, mística e hermética, acabaria por render-se ao cotidiano. Ao lado de seus belos sonetos lírico-amorosos, encontram-se poemas sobre o que há de mais prosaico, como o “Poema enjoadinho”, que trata da dor e da delícia de se ter filhos:
Filhos… Filhos?
Melhor não tê-los!
Mas se não os temos
Como sabê-lo?
(…)
E então começa
A aporrinhação:
Cocô está branco
Cocô está preto
Bebe amoníaco
Comeu botão.
Filhos? Filhos
Melhor não tê-los.
A poesia no cotidiano, o cotidiano na poesia. E em ambos, o mar. Os dois escritores, tendo vivido grande parte de suas vidas no Rio de Janeiro, detectam suas cenas repletas de lirismo nas paisagens marinhas (a célebre “Garota de Ipanema” que o diga). Na “Balada das meninas de bicicleta”, de Vinícius, o eu lírico observa a beleza da cena das ciclistas no Arpoador e tenta eternizá-la:
No vosso rastro persiste
O mesmo eterno poeta
Um poeta – essa coisa triste
Escravizada à beleza
Que em vosso rastro persiste,
Levando a sua tristeza
No quadro da bicicleta.
Em “As meninas”, de Braga, o narrador se lembra de ter visto duas meninas na praia. A cena é bela e, tendo causado alegria, agora provoca tristeza:
(…) Uma devia ter 7 anos, a outra 9 ou 10; não sei quem eram, se eram irmãs; de longe eu não as via bem. Eram apenas duas meninas vestidas de cores marinhas brincando no mar; e isso era alegre e tinha uma beleza ingênua e imprevista.
Por que ressuscita dentro de mim essa imagem, essa manhã? Foi um momento apenas. Havia muita luz, e um vento. Eu estava de pé na praia. Podia ser um momento feliz, e em si mesmo talvez fosse; e aquele singelo quadro de beleza me fez bem; mas uma fina, indefinível angústia me vem misturada com essa lembrança. O vestido verde, o vestido azul, as duas meninas rindo, saltando com seus vestidos colados ao corpo, brilhando ao sol; o vento…
Percebe-se, no entanto, que os dois observadores se entristecem diante da beleza. Talvez por adquirirem a súbita consciência de que ela é efêmera. A poesia – como se apresenta nas crônicas do “Velho Braga” e nos versos do “Poetinha” – afinal, deve ser isso mesmo: a dialética entre a beleza e a melancolia da condição humana.
Marise