O caso dos dez ratinhos

Publicado em 23/10/17

Oi, tudo bem por aí?

Hoje, quero te contar uma história que quem convive comigo não aguenta mais ouvir, uma novela que se estendeu por quase dois meses e tomou uma proporção muito grande na minha vida em Boston. Praticamente um caso de polícia, meu amigo. Os personagens principais são: eu, dez ratinhos, uma peruana e dois meios de cultura. A cena do crime, nada mais nada menos do que Harvard University.

Widener Library em Harvard

Widener Library em Harvard

Preciso começar te explicando o projeto científico que causou todo o alvoroço. Não gosto muito de detalhar meus experimentos porque creio que certas minúcias do laboratório não acrescentem muito na sua vida, então irei apenas prover o mínimo de informação necessário para a compreensão da história de hoje. Como já falei diversas vezes, eu trabalho em um laboratório de Harvard especializado em realizar análises de toxicologia no sistema respiratório. A minha linha de pesquisa tem como foco o uso de finíssimas fatias de pulmões de ratos como meio de testar a toxicidade de vários produtos químicos: é como se cada pedacinho funcionasse como um pulmão inteiro. Toda vez que começo a explicar isso para um amigo, a primeira pergunta invariavelmente é: “Carol, como esses pedacinhos são mantidos vivos?”. No meu laboratório, é usada há anos uma espécie de meio de cultura com um nome super longo e complicado do qual te pouparei, que é capaz de suprir todas as necessidades vitais das fatias de pulmões por alguns dias. Eu e meus experimentos vivíamos felizes com esse meio de cultura.

Até que, em meados de julho, fui convocada para uma reunião praticamente emergencial. Um outro laboratório americano concorrente ao nosso, chefiado por um tal de Dr. Holger, havia descoberto um novo meio de cultura que, segundos os seus criadores, era capaz de manter as fatias de pulmão com maior viabilidade por mais tempo – e naturalmente custava 30 vezes mais caro. Nosso laboratório, evidentemente, precisava testar logo essa nova substância. Desenvolvemos rapidamente um experimento a fim de comparar o nosso meio de cultura usual com o do grupo Holger. No mundo da ciência, não se pode ficar para trás!

Fiquei responsável por esse projeto, o que me deixou muito animada, já que parecia algo muito direto e promissor. As férias de verão e a demora para recebermos cada um dos componentes do novo meio de cultura atrasaram consideravelmente o início dos experimentos, que só ocorreu no final de agosto.

Enfim, finalmente estava tudo pronto para começar. Seria um experimento de 14 dias consecutivos (ou seja, adeus, finais de semana!) que exigiria minha dedicação total. No dia 1, os ratos seriam sacrificados e seus pulmões, removidos e fatiados. A partir do dia 2, os 200 pedacinhos obtidos seriam divididos em 4 grupos:

  • A: 50 seriam imersos apenas no nosso meio de cultura padrão
  • B: 50 no meio padrão com nanopartículas de prata
  • C: 50 apenas no meio Holger
  • D: 50 no meio Holger com nanopartículas de prata

Ambos os meios de cultura precisavam ser trocados no máximo a cada 48 horas, pois, simplificadamente, os pedaços de pulmões consomem todo o “alimento” presente no líquido nesse período. Ademais, em dias específicos, eu mediria a atividade metabólica das fatias usando um teste chamado MTS, até finalizar os 14 dias.

Tudo parecia muito simples comparando com os meus projetos anteriores, e eu sabia muito bem o que esperar: ao longo dos dias, todos os grupos sofreriam uma diminuição fisiológica da atividade metabólica, mas esse decréscimo seria menor nas fatias tratadas com o meio Holger. As nanopartículas de prata eram tóxicas, então se esperava maior viabilidade no grupo A do que no B, e no grupo C do que no D. Tudo parecida simples até demais…

O único ponto que tinha um potencial gigantesco para dar errado era a contaminação. Manter essas fatias vivas por uma dia sem atrair milhões de bactérias já é difícil, imagine por 14. Soma-se a isso o fato de que os outros pesquisadores do meu laboratório estariam fazendo experimentos com ratos ininterruptamente, tornando um desafio ainda maior manter o ambiente o mais estéril possível. Todavia, contrariando as expectativas de muitas pessoas, eu consegui manter 199 dos 200 pedacinhos livres de bactérias, não sem esgotar o estoque de álcool do laboratório e de paciência da narradora.

Adoraria acabar a história aqui com um final feliz, mas a verdade dos fatos me obriga a continuar. O que mais poderia falhar? Vamos direto ao ponto: a única coisa que NÃO deu errado foi a parte da contaminação. Todo o resto foi um desastre. Todos os reagentes deram algum problema, nenhum dos materiais funcionava como deveria. Cada dia, aparecia um problema novo, alguma máquina travava, algum produto expirava antes do previsto. E lá saia eu feito louca pelos corredores da Harvard School of Public Health tentando encontrar uma solução. E o problema não podia ser resolvido no dia seguinte, pois o experimento tinha um cronograma muito fixo e definido. Em suma, ou eu solucionava o conflito do dia, ou eu perdia tudo que fizera até aquele ponto.

Fileiras de laboratórios em todos os andares do prédio

Fileiras de laboratórios em todos os andares do prédio

Eis que, depois de duas semanas de muito esforço, finalmente chegou o último dia. Na noite anterior, eu havia sonhado com aquele experimento, tamanho o meu envolvimento (sonho ou pesadelo? Ou talvez um pressentimento?). Na manhã do 14o dia, assim que cheguei ao laboratório, verifiquei se a minha placa com as fatias de pulmões estava livre de bactérias dentro da incubadora. Satisfeita com o que vi, fui para outra sala e comecei a fazer os preparativos para a última medida de viabilidade do projeto.

Cerca de uma horas depois, voltei para pegar minha placa na incubadora… e ela não estava lá. Simplesmente, desapareceu. Primeiramente, pensei que estivesse delirando. Eu mesma deveria ter esquecido de recolocá-la no lugar de costume. Depois de reconfirmar minha sanidade mental, já muito preocupada, comecei a perguntar aos demais pesquisadores do laboratório se haviam pegado minha placa. Todos negaram, obviamente ninguém pega experimentos alheios, principalmente os que são arruinados se retirados da incubadora por alguns minutos. A única pessoa que havia entrado no recinto e não estava mais lá era a peruana Daysi, pesquisadora de outro laboratório de Harvard que ocasionalmente utiliza algumas das nossas máquinas. Como ela não atendia o celular, saímos todos em busca dela. Daysi deveria estar em algum lugar entre o terceiro andar e o subsolo, o que compreende uma quantidade enorme de possibilidades. Não sei como, mas, no meio daquele mar de salas e corredores, eu a encontrei. Daysi estava manipulando uma placa idêntica à minha, e meu coração quase parou durante os dois segundos em que demorei para perceber que não era a mesma. Era muito parecida, mas certamente não era a minha.

A placa à qual me refiro era desse tipo

A placa à qual me refiro era desse tipo

Respirei fundo e tentei me recompor, já que não podia começar gritando com alguém que podia perfeitamente ser inocente.

  • Oi, Daysi. Tudo bem? Você por acaso usou nas últimas horas a incubadora do Brain lab? – perguntei em inglês com a voz mais amigável que consegui.
  • Oi, Carolina. Usei, mas só mexi nas minhas placas.
  • Tem certeza?
  • Tenho, absoluta. Todas as minhas placas têm o meu nome.

Não havia como rebater uma resposta categórica dessas. Eu estava quase saindo do laboratório dela quando vi. Sobre a bancada atrás da Daysi, estava a MINHA placa. Minha placa, da qual eu cuidara por 14 dias. Quase minha filha àquela altura! Atravessei a sala, peguei-a na mão e não havia espaço para dúvidas. Era a minha placa. Eram meus pulmões. Era a minha letra na tampa.

  • O que. Essa placa. Está. Fazendo. Aqui? – eu esbravejei, tremendo de raiva.
  • Essa placa está aqui porque é minha. Tem o meu nome nela. – ela também levantou a voz.

Ah, não. Aí já era demais! Só podia ser brincadeira! Eu estava furiosa, e nem imaginava o que viria depois…

Semana que vem, te conto o restante dessa loucura da placa desaparecida, o resultado do experimento e outras coisinhas que só Harvard mesmo para me ensinar.

Até lá!

Carol Martines

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Carolina Martines estudou no Colégio Bandeirantes de 2006 até 2012. Em 2013, foi aprovada em primeiro lugar na Escola Paulista de Medicina (UNIFESP), mas optou por cursar medicina na Universidade de São Paulo (USP). Depois de concluir os quatro primeiros anos da faculdade no Brasil, foi aprovada em um programa que a Faculdade de Medicina da USP tem com a Harvard University. Este programa seleciona estudantes que terão o privilégio de ser alunos de Harvard por um ano, trabalhando com pesquisa científica.

“Para todo problema complexo existe sempre uma solução simples, elegante e completamente errada.”– H. L. Mencken)

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